Chave de Outono


Sabe aquela sensação melancólica que as vezes invade o seu coração numa tarde chuvosa na cidade?
A sensação de Outono. De frio, solidão e beleza que paira no ar e no vento que sopra as folhas vermelhas das árvores?
Do lado de fora, enquanto as gotas frias despencavam do céu nublado, os carros passavam num transito lento e as pessoas se apertavam na calçada com suas capas e guardas chuvas pretos e cinzas.
Aya observava de dentro através da janela da lanchonete.
É claro que ela conhecia muita bem a sensação. Isso era notável em seu rosto e na expressão de seus olhos verdes tão perdidos na paisagem.
Seu cabelo era castanho puxado para o loiro, talvez pouco mais comprido que o meio das costas, mas preso em um rabo de cavalo. Tinha uma bela franja que agora despencava numa única mecha ao lado do rosto.
Estava com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos apoiados na mesa. Nos lábios o canudo do milk shake que já há alguns minutos não sabia o que era um gole. O óculos de armação vermelha quase pendurado na ponta do nariz.
Devia ter cerca de dezesseis anos, não muito mais que isso. Pelo menos era o que o seu uniforme escolar indicava.

- E você, o que faria? - disse uma voz familiar que ecoou distante em sua cabeça antes de um dedo indicador lhe cutucar a cabeça.
- Ahn? Oi... - Aya falou como se acordasse de um sonho.
- Ooooi... Tudo bem ai? Terra para Aya. Alguém na escuta?

Nami... Este era o nome da garota que tentava uma comunicação extra-terrestre com Aya.
Também tinha os olhos verdes, mas em um tom mais escuro. Cabelos loiros e mais curtos. Provavelmente muito mais alegre e um pouco mais baixa que sua amiga.

- Tá tudo bem, Aya? - perguntou Mia, a terceira do grupo. Também de olhos verdes e cabelo em um tom loiro mais escuro, mais comprido e cacheado.

As três realmente eram um tanto parecidas e qualquer um que olhasse talvez pensasse que eram irmãs... Primas? Quem sabe...
E não faltavam pessoas para olhar. Homens e mulheres que talvez não chegassem a ter opção.
As três chamavam atenção simplesmente por existir e a coisa ficava ainda mais complicada quando estavam juntas.
Mesmo num dia como aqueles era como se possuíssem exclusividade sobre um raio de sol particular que atravessava as nuvens somente para iluminá-las.
Nami eventualmente se aproveitava disso. Piscava pra um ou outro garoto acompanhado de sua namorada apenas para ver o circo pegar fogo. Logo em seguida Mia a recriminava, mas não sem rir do acontecido enquanto Aya escolhia o próximo alvo.
Ainda assim, as três não passavam de amigas que se consideravam "irmãs gêmeas de mães diferentes". E bem poderiam ser...
Mas talvez não naquele dia.

- Desculpa garotas. Eu to voltando pra casa.
- Aaaah! Qual é Aya! Não se vá! - disse Nami enquanto se debruçava sobre ela num abraço.
- Eu preciso terminar uma coisa...
- Terminar é? - foi a vez de Mia, falando com a sua típica voz sábia enquanto segurava a xícara de chocolate quente perto dos lábios rosados. - Não seria... Deixar passar?

Aya fez uma careta para a amiga.
É claro que ela precisava deixar passar e sabia disso. Só... Não era tão simples assim...

- Não dá pra terminar o que nunca começou, Ayazita.
- Eu seeeeeei!!! - ela exclamou colocando as duas mãos na cabeça apenas para deixá-la escorregar devagar e bater com a testa na mesa. - Eu sou uma idiota mesmo. Por que dentre tantas pessoas que eu poderia me apaixonar...
- Foi ser logo por alguém que não liga pra você? - Nami completou.
- Você não tá ajudando, Naminha... - Aya resmungou baixinho, balançando a mão pra amiga sem tirar a testa da mesa.
- Ops... Desculpa... Quero dizer! Mas que ousadia desse cara!!! Olha pra gente! Nós somos lindaaaas! L-I-NDAS! Olha pra você! Parece praticamente um anjo. Sabe de uma coisa?! Eu acho que você ta saindo ganhando nessa! O cara só pode ser idiota. Ou cego... Você não iria querer namorar com um cego.
- E por que é que ela não iria querer namorar com um cego, Nami? - Mia perguntou, genuinamente intrigada.
- Você já parou pra se perguntar como os cegos fazem pra saber que a bunda esta limpa quando vão ao banheiro? - a garota replicou, convicta de que tinha um ponto.

Elas não conseguiram evitar rir.
Nami era assim. Ingenuamente... Inocentemente... Insanamente... Alegre e um pouquinho sem noção.
...Ok. Talvez um pouco mais que um pouquinho.

- Obrigada gente, vocês são demais. - Aya replicou depois de rir.
- Mas mesmo assim você vai embora ne? - Mia falou.
- Fazer o que... Ta um ótimo dia pra curtir fossa.
- Se você diz.

A garota levantou e pegou seu material do colégio, todo guardado em uma bolsa de couro de alça única que ela levava atravessada na frente do corpo.

- Não esquece que amanhã tem prova. - Nami falou quando a garota já estava na porta.
- Pode deixar!

E é assim que as coisas acontecem.
...De repente.
Enquanto você caminha para fora de uma lanchonete sem prestar atenção para onde vai. Olhando para trás e se despedindo de suas amigas enquanto algum doido, sabe-se lá por que, vem correndo pela calçada...
E então... Câmera lenta...
Foi assim que aquela colisão de destinos se passou para Aya...
Primeiro ela viu o rosto das amigas se contraindo na típica expressão que fazemos quando estamos prestes a ver alguém se machucar, mas não teve tempo de entender que elas estavam fazendo essa expressão por ela.
Depois sua visão periférica capturou uma mancha indistinta e isso antecedeu a sensação dessa mesma mancha se colidindo fortemente contra seu corpo.
...Aí sim ela entendeu o que motivou a expressão no rosto de suas amigas, só que agora estava ocupada demais sendo arremessada no asfalto junto dessa tal mancha.
"Ah! Sim... A mancha... O que será?"
O pensamento voou por alguma região aguçada de seu cérebro e ela imediatamente notou um rosto muito próximo do dela. Um garoto de olhos castanhos escuros, provavelmente também com seus dezesseis anos ou perto disso.
Também notou que ele sorria. E que seus corpos estavam girando lentamente no ar...

- Oi. - disse o garoto, despreocupado.
- Olá... - ela falou. E percebeu que ele a estava segurando quase num abraço.
- Desculpa o mau jeito. Talvez isso doa um pouco.
- Tudo bem, acontece... Nós... Estamos girando no ar?
- É... Estamos... - ele falou enquanto olhava ao redor para confirmar. Uma ou duas voltas no eixo longitudinal eu acho. Mas não se preocupe, pra nossa sorte você vai cair em cima de mim.
- Nossa sorte?
- Sua por que você não vai se machucar. E minha por que... Bem... Felizmente eu trombei com você e não com... Sei lá, algum macho peludo?

Aya até pensou em sorrir, mas de repente a câmera lenta acabou e ela sentiu o impacto do tempo voltando ao normal.
E claro que também sentiu o impacto do chão sendo amortecido pelo corpo do garoto. Assim como o calor desse mesmo corpo enquanto estava debruçada sobre ele com o rosto apoiado em seu peito.
...Apoiada por talvez um pouco mais de tempo do que deveria?

- Tudo bem? - ele perguntou depois de alguns segundos, quando começou a se tornar um pouco constrangedor o olhar das pessoas que passavam ao redor.

A garota se deu conta do que havia acontecido e se levantou mais do que depressa.
Envergonhada?
"Magina"... Só por que ela tinha as bochechas e orelhas tão vermelhas que os carros quase confundiam com o semáforo?

- Desculpa! - ela falou de repente.

O garoto sorriu antes de se levantar.
Seu cabelo era negro, liso e comprido até a até a altura da cintura.
Ele usava uma camiseta preta com capuz cujas mangas pareciam ter sido arrancadas na costura. Sua calça também preta tinha uma corrente presa em dois pontos da lateral do quadril formando um arco que descia até o joelho da perna esquerda.
Devia ser uns dez centímetros mais alto que Aya e magro.
Totalmente o contrário do que as garotas da idade dela costumavam considerar atraente e ainda assim...

- Está tudo bem. Você se machucou? - ele perguntou enquanto olhava ao redor, claramente preocupado com alguma coisa.
- Eu? Ahn... Não... Estou ótima.
- Que bom. Então...
- Aya! - o grito veio da porta da lanchonete e imediatamente chamou a atenção da garota.

Lá estavam Mia e Nami, notavelmente preocupadas.

- Calma gente, eu to bem. - ela falou antes de se virar de volta para contemplar o espaço vazio onde antes havia um garoto e encontrar no chão uma pequena chave pendurada numa corrente.

...Isso talvez por que, mesmo em câmera lenta, uma colisão sempre tende a deixar destroços.
E aquele com certeza pertencia ao garoto com a habilidade de desaparecer na multidão.
Então jamais se esqueça de usar cinto de segurança, mesmo numa colisão de destinos!

- Você se machucou? - Mia perguntou, apenas para ser completamente ignorada pela amiga.
- Talvez ainda de tempo. - Aya murmurou pra si mesma enquanto segurava a chave na mão.
- Tempo do que, amiga?

Mas como resposta Nami teve que se contentar em ver Aya sair correndo.
E ela correu...
...Na chuva, por entre pessoas com suas capas e guarda-chuvas...
Atravessando na frente de carros presos num transito lento.
Correu olhando para todos os lados. Procurando em todas as direções...
"Será assim tão difícil encontrá-lo?"
E agora, quase uma hora mais tarde, foi a vez de Aya se contentar em manter a chave pendurada no pescoço e entrar em casa com água de chuva pingando de todas suas peças de roupa.
Essa era sua resposta...
Tomar um banho quente de banheira enquanto encarava aquela pequena chave e lembrava do que aconteceu.
Vestir o seu pijama por cima do pingente recém adquirido enquanto se perguntava por que tinha a sensação de já ter visto aquele garoto antes.
E ter seus olhos quase se fechando de sono quando imaginou que ele entrava pela janela do seu quarto que ficava no sétimo andar...

- Hey... Bela adormecida. - disse uma voz em sussurro.

Ela sorriu, mesmo sem saber por que a ideia daquela voz tão parecida com a daquele garoto a fazia sorrir.
...Sorriu e começou a adormecer.

- Hey! Não...! É sério... Não durma. - a voz repetiu.

Foi então que Aya abriu os olhos de uma vez só e encarou o garoto parado de pé ao lado de sua cama.
E é claro que seu primeiro impulso foi o de gritar, mas ele se antecipou e saltou sobre ela tapando sua boca com a mão.

- Shhhhh... Calma! - ele sussurrou. - Eu não vou te machucar. Eu prometo!

Ah sim! Claro!
"Eu prometo."
Disse o garoto que havia invadido o seu quarto e agora estava literalmente debruçado em cima dela, com uma mão silenciando sua boca e outra apoiada no colchão enquanto, por debaixo daquele lençol e daquela coberta ela não vestia nada mais que um shorts e camiseta.
Além disso, para evitar falar alto, eles estavam novamente tão perto que mais uma vez ela podia sentir suas bochechas e orelhas esquentando.

- Se eu tirar a mão da sua boca você promete não gritar? - ele perguntou calmamente e sem saber exatamente por que ela acenou que sim. - Ok então... Por favor, não grite.

Ele afastou a mão lentamente enquanto permanecia olhando no fundo daqueles olhos verdes.
...Talvez olhando tão perto por um pouco mais de tempo do que deveria?

- Você pode sair de cima de mim, por favor? - ela pediu após alguns segundos e agora foi a vez dele se mover o mais rápido que pode se colocando de pé ao lado da cama.

- Desculpa. - disse apesar de não parecer tão arrependido assim...
- Como é que você entrou aqui?!

Aya sentou na cama puxando a roupa de cama com uma das mãos para se manter coberta enquanto procurava seus óculos com a outra.
Também acendeu o abajur a fim de ver melhor seu ilustre invasor.

- Pela janela... - ele falou apontando, como se não fosse nada.
- Estamos no sétimo andar!
- Eu sei! Eu achei que você morava no nono! O que acabou sendo uma terrível confusão...
- Você invadiu o apartamento do nono andar também?!
- "Invadir" talvez seja um termo um pouquinho forte, não acha?
- Quem é você afinal?
- Você parece estar ficando um pouco nervosa... Tem certeza que não vai gritar?
- Você quer que eu grite?
- Não! - E a voz dele saiu mais alto do que gostaria fazendo-o se encolher e tapar a própria boca. Coisa que fez Aya sentir vontade de rir. - Eu só estou procurando algo que perdi.
- Perdeu?
- Sim... Talvez quando nos chocamos logo cedo.
- Um colar?
- Isso!
- Uma correntinha de metal...
- Isso! Isso!
- Com uma chavezinha pendurada?
- Exatamente! Você viu?
- Não... Nem vi não...

O que se seguiu foi um breve momento de silêncio no qual Aya tentava não rir e o garoto se mostrava indignado.

- Você tá zoando com a minha cara, não tá? - ele perguntou enfim.
- Hmm... Ok... Talvez eu tenha visto a sua chave.
- Legal! E onde está?

Ele olhava ao redor procurando.

- Talvez ela apareça... Se...
- Se...?
- Você me contar como tudo passou tão devagar quando caímos e como você chegou até aqui no sétimo andar.
- ...Ah não.
- Ah sim!
- Não... Você não está entendendo... Eu estou com um pouco de pressa aqui.

Aya levantou as sobrancelhas e ergueu uma das mãos em forma de conchinha.

- Sabe o que é isso? - ela perguntou.
- O que?
- Minhas rugas de preocupação.
- Garota... Você...
- Quanto mais rápido você começar, mais rápido vai acabar.

Foi quando os dois ouviram uma explosão vindo de metros abaixo na rua.
O alarme de vários carros dispararam simultaneamente.

- O que foi isso? - ela perguntou.
- Você não vai querer saber... Sério. Por favor, me entrega a chave.
- É algo muito ruim?
- ...De zero a dez?
- Dez?
- Vinte e três e contando...
- Parece bem ruim... - ela falou antes de ouvirem outra explosão. O chão e as paredes tremeram fazendo algumas coisas caírem de prateleiras. E então um rugido monstruoso ecoou na calada da noite.
- ...E vai ficar pior quando chegar aqui no seu quarto...

Aya pulou da cama, se levantando imediatamente, tirando o colar do pescoço e se aproximando do garoto.

- Aqui esta a chave. E agora? - ela disse, mas ele continuou ali estático e a observando. - Que foi?
- ...Belo pijama.
- Garoto!! E agora?! - é claro que ela estava com vergonha, mas também estava assustada demais.
- Agora... - ele começou dizendo enquanto segurava a chave com uma mão. - Agora você me abraça forte e fecha os olhos.
- Como é?
- Rápido!!!

E é assim que as coisas costumam acontecer.
Do nada... De repente... Com desconhecidos tão familiares que parecem que você os conhece há mais de uma vida.
Quando eles invadem seu quarto de uma maneira improvável... Talvez impossível...
Tão rápido... E tão devagar...
Como num sonho.

Naquele abraço Aya sentiu como se fosse desaparecer.
Mas também sentiu que tudo poderia simplesmente sumir... Ela não ligava.
Ela podia ouvir o coração dele batendo e também seu perfume soprando numa brisa que ela não sabia de onde vinha...

- Acorde... - ela ouviu a voz distante. - Acorde bela adormecida.

Ainda de olhos fechados, Aya sorriu.
Sentiu uma mão deslizando por seu cabelo, afastando sua franja e deslizando por seu rosto.

- Como é que você consegue dormir tão profundamente aqui?

Ela abriu seus olhos devagar.
Lá estava ele com o uniforme da escola, sentado numa cadeira perto da sua, encarando-a com um sorriso no rosto, olhos castanhos-claro, mais claros que seus cabelos lisos, curtos e penteados.
E lá estava ela. Debruçada sobre a carteira, com os braços cruzados e os olhos meio grudados de sono.

- Gabi...? - ela perguntou como quem não acredita no que está vendo.
- Sim... Quem mais poderia ser?
- Gabi... É você mesmo?
- Sim, Aya! Sou eu! - e ele riu. - Está tudo bem?
- Está... Eu acho.
- Estava sonhando?
- ...Coisa do tipo...
- Pois então acorde! Tenho uma noticia pra te dar.
- Michele...? Você e a Michele...? Estão namorando?
- Mas... Como é que você sabe? Ainda não contamos pra ninguém... Eu queria que você fosse a primeira a saber.

Aya se levantou correndo da carteira e sem dar qualquer explicação começou a correr.
Primeiro para fora da classe... Depois pelos corredores... Então para fora da escola...
Já estava quase na rua quando...

- Hey... Garota. - ela ouviu uma voz chamar. Uma voz que a fez parar imediatamente no lugar, sem ousar sequer se virar.

Apenas ouviu alguns passos se aproximando e sentiu alguém parando atrás dela.

- Hey... Garoto. - ela falou baixinho, com um sorriso no rosto e ainda parada.
- Você tem um péssimo gosto pra namorados, sabia?
- Ah, é mesmo?

Ela se virou de uma só vez, com um sorriso malicioso estampado no rosto e um olhar felino, encarando nos olhos o garoto com sua chave pendurada no pescoço.

- Pois é... - ele disse enquanto dava mais um passo e parava lado a lado com ela. - Além disso...
- Além disso...?
- Você fica muito melhor de pijama.

Moon Ghost

Escritor, designer, fotografo, musico, programador, ator, jogador, artista marcial e o que mais der na telha. Criador de mundos e alterador de realidades nas horas vagas.

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