Yue,
diferente dos outros protetores, não iniciou Rebeca imediatamente no
aprendizado e desenvolvimento das artes da manipulação de energia. E não é
preciso dizer que ela não gostou nada disso.
Muitos
dos protegidos já eram capazes de explodir coisas ou atear fogo. Eram capazes
de manipular a terra, a água, o ar e também conseguiam mover objetos apenas com
o poder da mente.
Já
para Rebeca era apenas uma somatória de aulas de matemática, literatura e dias
e mais dias de treinos de diferentes artes de luta corpo a corpo.
Todos
os outros protegidos praticamente viviam com seus protetores. Alguns realmente
moravam juntos. Do amanhecer ao por do sol eles estavam lado a lado, ensinando
e aprendendo.
Mas
Yue quase nunca passava tempo com Rebeca.
O
garoto às vezes ficava semanas sem aparecer e então, quando surgia, não parecia
ter muito à ensinar.
De
fato, todas as aulas que Rebeca frequentava eram ministradas por professores
particulares contratados por Yue e pra piorar nenhum deles gostava dela.
A
maioria até tentava disfarçar, mas haviam aqueles que não faziam questão de
esconder e abertamente declaravam seu desgosto pela garota a quem quisesse
ouvir.
Rebeca
já estava acostumada. Ou pelo menos era nisso que tentava acreditar.
Entre
outras diferenças em relação aos outros protegidos, Rebeca era a única mulher e
a única cuja família não possuía posses. Na verdade Rebeca sequer possuía
família. Ela havia se virado nas ruas por muito tempo até Yue Jaded decidir
fazer dela sua protegida em um mundo onde “ser um protegido” significava uma
grande honra destinada somente aos nobres filhos de senhores ricos.
Não
era a toa que a odiassem e por pelo menos seis meses havia aguentado esta
rotina de desprezos e maus tratos.
A
princípio ela não se importava.
Via o
fato de se tornar uma protegida como uma oportunidade de mudar de vida. Yue
Jaded não parecia ser um homem ruim. Talvez fosse um tanto misterioso, arrogante e
louco por comprar briga com toda Thyor ao toma-la por protegida.
Sim, ela
tinha esperanças de que Yue cuidaria dela. Seria a primeira vez que alguém
cuidaria dela.
Mas agora eles mal conversavam.
E nos
últimos tempos as coisas pareciam ainda piores.
Ele
chegava de onde quer que estivesse, já que nunca contava de onde vinha e pra onde ia, então dispensava
o professor da aula que ela estivesse tendo naquele momento, trancava as portas do
ginásio, que era onde ela costumava passar a maior parte de seus dias e dizia:
-
Vamos lutar.
E
lutavam...
Por
não mais que cinco ou seis minutos, era tudo o que faziam.
Não
havia vencedor ou perdedor.
Depois
desse curto período de tempo Yue interrompia a luta, ordenava a Rebeca que
continuasse treinando e partia novamente.
“Talvez
seja verdade.” – era o que ela pensava naquele momento durante a aula de
Kadan’sei, o professor que dentre todos provavelmente era o que mais a odiava.
– “Talvez tenha sido só isso”.
Seus
pensamentos se referiam as palavras que um dia, ainda no começo desta solitária
jornada, havia ouvido de uma de suas cuidadoras da Casa.
“Logo
ele vai cansar de você e então... Lá estará você novamente sozinha, mas será
diferente. Antes o mundo não ligava pra sua existência, mas agora todos
realmente te odeiam.”
- Por
que desperdiça meu tempo? – Kadan’sei gritou. Ele não esperou nem um segundo a
mais depois que Rebeca falhou no exercício que ele exigia. – Você é uma idiota
mesmo. Mulherzinha miserável e inútil! Vamos! De novo!
Diferente
dos outros professores, Kadan’sei não perdia qualquer oportunidade de insultar
Rebeca. De fato, a cada aula ele procurava diferentes formas de humilhá-la,
especialmente quando ela não conseguia realizar algum dos exercícios que ele
especialmente projetava para que não pudessem ser executados.
Rebeca
não perdia mais tempo se irritando, pois era pior quando se irritava. Ela apenas
levantou, tentou e falhou novamente.
- Sua
vermezinha podre. De novo!
Rebeca
repetiu tentativas uma após a outra, ouvindo os insultos a cada vez que
falhava, sentindo seu corpo doer a cada vez que tentava e sua cabeça pesando
com os pensamentos que carregava.
Por
quê? Por que ela insistia naquilo? Pra que?
Foi
quando ela finalmente caiu e permaneceu no chão.
-
Levante-se de uma vez, mulher! Levante-se agora e faça o exercício! – Kadan’sei
berrou. Estava de pé na frente de Rebeca.
A
garota apenas ergueu sua cabeça e o encarou com fúria no olhar.
Seus
olhos ferviam com lágrimas que ela recusava a soltar.
- O
que está esperando? – disse ele para a garota imóvel. – Vamos logo, garotinha
nojenta. Levante-se!
Segundos
de silêncio se seguiram após o grito do professor. Rebeca ainda estava parada
no mesmo lugar.
Então
Kadan’sei sorriu.
-
Então é isso? Finalmente você percebeu, não é? Finalmente se deu conta de que
este não é seu lugar, não é? Está vendo agora?
Ele
parecia profundamente satisfeito.
Kadan’sei
já havia forçado Rebeca além de seus limites inúmeras vezes. Já havia
designado exercícios especialmente para que ela sofresse, mas não importava o
que fizesse a garota sempre se levantava e continuava.
Mas
dessa vez... Era como se algo realmente tivesse morrido dentro dela.
Rebeca
não estava apenas fisicamente ferida. Ela estava frustrada em um nível muito
além do que já havia se frustrado antes. Estava cansada, decepcionada e
desiludida. Sentia-se humilhada. Sentia-se tola e burra. Sentia-se merecedora
de todos os insultos que havia recebido até então.
Estava
inerte, incapaz de se mover.
Gastava
toda sua energia e concentrava toda sua força para conter as lágrimas, tentando
preservar sua última gota de amor próprio.
- Você
é só uma mulhrzinha, afinal. Mas você é uma mulher de sorte, sabia? Graças ao
seu bom protetor você provavelmente vai acabar casada com algum homem rico que
te enchera o ventre de filhos e uma casa cheia de louças e roupas pra lavar. –
ele sorriu maliciosamente. – Um futuro bom demais para uma mendiga morta de
fome que acabaria numa vala ou vendendo o corpo pra viver, não acha?
- Não,
não acho. – a voz veio de trás de Kadan’sei. – Rebeca, levante-se.
Era
Yue.
Por um
instante o professor gelou. Qualquer um em Thyor seria um tolo se não temesse
Yue Jaded.
-
Espere lá fora, Kadan’sei. Saia e tranque a porta. Não deixe ninguém entrar e
abra somente quando eu ordenar.
- Sim
senhor. – disse o professor, aliviado. Parecia que Yue não ligava para o que
ele havia acabado de dizer. Talvez até mesmo concordasse. Então saiu murmurando
para que Rebeca pudesse ouvir. – Talvez ela já seja a putinha de alguém,
afinal.
Rebeca
ainda estava no chão e evitava encarar Yue.
- Se
vai chorar, chore logo, mas faça isso de pé. – ele falou friamente.
- O
que você quer?! – ela gritou do chão. Uma convulsão de lágrimas transbordou de
seus olhos. – O que você quer de mim afinal?!
- Eu
já disse, não? Quero que se levante.
Rebeca
queria fugir, queria morrer, queria matar... Mas se limitou a fazer o que Yue
mandou.
-
Prepare-se, Rebeca.
- Eu
não quero lutar com você... – sua voz saiu fraca e baixa.
- O
que disse?
- Eu
disse que não quero lutar com você! – gritou.
Por
alguns instantes Yue se limitou a encarar sua protegida.
- Uma
decisão inteligente, mas qual o motivo de não querer lutar comigo?
- Pra
que?! Pra que lutar com você? Eu sou só uma garota, tá legal? Apenas uma
mulher! – ela gritou novamente. – Ele está certo! Estão todos certos! Este não
é o meu lugar! Eu sou fraca, sou imprestável... É isso que você quer ouvir, não
é?!
A
garota estava prestes a desabar no chão novamente, mas Yue não permitiu.
- Eu
não falei que podia se sentar. Eu disse pra se preparar.
- O
que você quer de mim? – e chorou mais ainda.
- Eu
quero que se prepare e eu quero que lute.
- Por
quê?
- Por
que tenho algo a te ensinar.
- Eu
não quero aprender.
- E o
que você quer então, Rebeca? Quer ir embora? Quer desistir? Fugir desse mundo?
- Você
ouviu o que ele disse! Ele tem razão! Todos tem razão. – ela estava gritando
novamente. – Eu não aguento mais...
- É
mesmo?
Yue
começou a circundar a garota, ele parecia frio como sempre.
- Sabe
o que te espera lá fora, Rebeca? Homens como Kadan’sei. – começou a falar. –
Homens que vão decidir com quem você deve casar, que vão decidir o que você
deve vestir, que vão decidir quantos filhos você deve ter independentemente de
você querer ou não. É isso que você quer?
-
Não...
- Mas
você acabou de dizer que eles estão certos... E então, lá fora você vai fazer o
que? Voltar pras ruas? Quer que eu encontre um marido para você? Você vai
passar sua vida cuidado da casa e filhos? Eu não ligo Rebeca. Se for isso o que
você quer, eu posso arranjar. É isso o que você quer?
-
Não... Eu não...
- Você
não...?
- Eu
não sei!
- Bem,
talvez não importe o que você quer, afinal. Você é só uma mulher não é mesmo? E
eu sou um homem, então eu devo decidir?
Rebeca
encarou Yue com desprezo.
- Faça
o que você quiser. – ela disse, secando as lágrimas.
- Ah
sim, eu farei. – ele replicou, parando bem de frente para ela e a encarando nos
olhos. - Eu farei o que quero, mas não por que você está dizendo para eu fazer e muito melhor por que sou homem ou por que você é mulher. Eu farei o que eu quiser, por que eu posso.
Sem
desviar o olhar, Yue se aproximou mais e mais de Rebeca. Algo em sua expressão dava
calafrios na garota.
- Eu
escolhi você como protegida, por que eu posso. Eu fui contra todos do conselho,
fui contra toda Thyor, por que eu posso. Eu durmo o quanto quero e vou pra
onde quero, por que eu posso. E se alguém tenta me impedir, eu elimino... Por
que eu posso.
Agora
ele estava a poucos centímetros de Rebeca e ela sentia a pressão de seu olhar.
Yue não falava alto, daquela distância não seria mesmo necessário. Sua voz saia
quase como um sussurro rancoroso.
- Eu
posso matar quem discordar de mim, apenas por que discordou. Estou errado,
Rebeca?
-
Não... – sua voz saiu fraca. De alguma forma ela sabia que Yue não lhe faria
mal, mas não conseguia deixar de tremer. -
Mas alguém também pode te matar.
- Uma
mulher talvez?
- Se
ela for mais poderosa que você...
-
Prepare-se, Rebeca. – disse ele se afastando. – Você vai lutar.
Rebeca
esteve tão tensa com a postura de Yue que todo o resto pareceu desaparecer de
sua mente. Suas lagrimas haviam parado de escorrer e agora ela só pensava no
que havia dito por último.
Yue
foi até a porta e deu duas batidas.
-
Kadan’sei, entre. – disse o garoto quando a porta se abriu. - Lute com minha
protegida.
O
professor que já parecia bem alegre antes, agora estava sorridente.
- Sua
protegida não está pronta para lutar comigo, senhor. Sem ofensas, mas ela não
tem o que é necessário.
-
Então você não tem nada a temer.
“Temer?”
– as palavras de Yue soaram como um açoite no orgulho do homem.
- E
por que eu teria medo de uma mulher? - e assumiu a posição de luta. – Espero
que o senhor não me culpe se a machuca-la um pouquinho.
Rebeca
não sabia o que pensar daquela situação até Yue se aproximar e sussurrar em seu
ouvido.
-
Acabe com ele, garota. Mostre pra esse idiota do que uma mulher é capaz. Mostre pra ele o que você pode fazer, Rebeca.
A
garota se virou para Yue e estava lá... Aquele mesmo olhar de ainda a pouco,
mas dessa vez a pressão era diferente. Ela sentia como se estivesse se enchendo
de energia.
-
Preparem-se. – Yue ordenou para que ambos se posicionassem. – Comecem!
Kadan’sei
parecia muito confortável e feliz em sua situação.
Ele
era um mestre em diferentes artes de combate corpo a corpo e por muito tempo
foi membro das tropas de Thyor.
Era um
homem experiente, mais velho e mais forte que Rebeca. Além disso, parecia
motivado pela raiva que sentia da garota.
Tudo o
que Rebeca tinha, no entanto, eram suas aulas e um terrível medo de apanhar.
As
consequências foram rápidas e óbvias.
A
ofensiva era toda de Kadan’se enquanto ela preocupava-se somente em se esquivar
e se proteger. Não demorou até ele conseguir encaixar um soco em sua barriga
seguido de um segundo soco no rosto.
Rebeca
foi ao chão com o nariz sangrando.
-
Levante-se, Rebeca. – Yue ordenou. – A luta não acabou.
Rebeca
não queria, mas obedeceu mesmo assim. E a luta recomeçou.
Mais
uma vez o professor partiu para a ofensiva e mais uma vez ela procurou se
defender.
Dessa
vez o soco a atingiu diretamente na cabeça a deixando tonta. Um segundo golpe
nas costelas a derrubou no chão. O mundo girava e sua cabeça doía muito.
- É
melhor ficar no chão, mulherzinha. – o professor falou. – Parece que seu
protegido acredita demais em você, mas ambos sabemos do que você é capaz, não
é?
Rebeca,
ainda no chão, processava as palavras enquanto sua visão parava de girar.
-
Levante-se, Rebeca. – Yue falou mais uma vez.
- É
melhor não se levantar, garota. Estou me segurando pra não deformar essa sua
carinha de puta.
-
Carinha de puta? – a garota repetiu e então começou a rir.
Ela
começou a se levantar devagar e mudou sua posição de luta.
- Vem
cá. – disse gesticulando com a mão. – Eu vou te mostrar quem é a putinha aqui.
Por
trás de Kadan’sei, Yue sorriu.
Aparentemente
Rebeca finalmente havia percebido.
O
professor partiu para um ataque ainda mais violento que o anterior. Os golpes
saíram com força e velocidade dobrada, mas ainda assim Rebeca conseguiu se
esquivar e defender cada um deles.
A
ofensiva foi tão intensa que Kadan’sei, algum tempo depois, foi obrigado a se
afastar para recuperar o folego.
- O
que foi? É só isso? – ela falou. Seus braços estavam vermelhos e com pontos
roxos de bloquear os pesados golpes. Os dois golpes que havia levado antes
também já começavam a se pronunciar em inchaços, mas tirando isso Rebeca estava
perfeitamente bem. - Pensei que você fosse deformar minha cara. Mas você não
consegue, não é mesmo?
Kadan’sei
se enfureceu ainda mais. Era um homem explosivo afinal.
Sua
próxima onda de ataques foi desastrosa.
Era
óbvio para Rebeca que ele não tinha como vencer aquela luta. É verdade que ele
era experiente, é verdade que ele era homem e que era mais forte. Mas diferente
de Rebeca, Kadan’sei não estava em condições físicas adequadas. Além disso, ele
subestimou a garota desde o começo.
Yue não
havia contratado apenas um professor de artes marciais, havia contratado
vários. Tentar lutar contra Kadan’sei
dentro de seu próprio estilo de luta lhe rendeu dois ferimentos
desnecessários, mas muito uteis pra perceber que ele não tinha como lidar com
sua esquiva, defesa e agora, cansado, ainda menos capaz de lidar com sua
ofensiva.
O
primeiro golpe de Rebeca contra Kadan’sei foi tão rápido que ele nem sequer
conseguiu ver de onde vinha. O cruzado de direita atingiu seu rosto uma vez,
logo em seguida mais uma e então mais uma.
Foram
três golpes tão rápidos que ele perdeu completamente a noção de direção.
Foi
então que veio o chute contra sua coxa. Um golpe tão pesado que o fez gemer de
dor. Sua perna esquerda fraquejou.
Se com
as duas pernas em bom estado ele já não conseguia atingir Rebeca, com uma delas
machucada o processo se tornou ainda mais difícil.
- Quem
é a putinha agora, babaca? – Rebeca gritou com raiva antes de avançar
novamente.
Ela se
esquivou rapidamente de um soco ao mesmo tempo em que acertava em seu
adversário um belo golpe na região do diafragma. Kadan’sei se contorceu sem ar,
mas Rebeca não parou. O próximo golpe da garota foi tão bem encaixado que até
mesmo Yue ouviu o som do nariz de Kadan’sei ao se quebrar.
O
homem cambaleou pra trás. Rebeca girou no próprio eixo, saltou e lhe acertou um
chute giratório entre o pescoço e o maxilar.
Kadan’sei
estava esparramado no chão, deitado de barriga pra cima e quase inconsciente
quando Rebeca se aproximou e parou ao seu lado.
- Eu
não tenho mais nada para aprender com você e nunca mais quero te ver na minha
frente. Eu não vou te matar hoje, apenas por que eu não quero. Mas talvez eu
mude de ideia se te ver de novo.
Dito
isso, Rebeca procurou por Yue ao redor.
O
garoto já estava afastado, de costas para ela, abrindo a porta e aparentemente
pronto pra sair.
- Yue.
– ela chamou ainda parada onde estava.
-
Continue treinando, Rebeca. Eu volto em três dias. – respondeu, ainda de
costas.
Rebeca
acenou um sim com a cabeça e a manteve baixa sentindo-se um pouco triste.
-
Rebeca. – ela ouviu chamar e novamente voltou sua atenção para o garoto que
dessa vez a estava olhando. – Eu sabia que você dava conta, mas parabéns mesmo
assim. – disse piscando o olho direito. Então abriu a porta e saiu.
A garota
sorriu e lágrimas começaram a escorrer de seus olhos.
Kadan’sei
havia recuperado força suficiente pra se levantar e começar a se arrastar para
longe dali, mas não sem antes murmurar consigo mesmo enquanto se afastava:
- Você
venceu sua idiota. Por que está chorando?
Não
era como se ele precisasse de resposta ou como se ela precisasse responder, mas
ainda assim falou para que somente ela mesma pudesse ouvir sua própria voz...
“Por
que eu posso”.
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