Estava chovendo.
Yue não aparentava ter mais que quatorze anos. Talvez até
mesmo menos.
Sua roupa era branca, composta por calça e camisa. Apesar
dos cortes, das manchas de sangue e de barro, era possível distinguir no lado
esquerdo do peito um brasão.
Seu cabelo chegava somente até a altura dos ombros e
nesse momento estava tão encharcado que a água escorria por suas costas.
Na mão direita uma espada cuja lamina apresentava
inúmeras fissuras e na esquerda um pedaço da roupa do adversário que havia acabado
de eliminar. Havia uma pilha de corpos sob seus pés, mas os inimigos não
paravam de vir.
O garoto não sabia por que estava sendo atacado. Na
verdade não parecia sequer se importar.
Da mesma forma que as gotas de chuva caiam por que caiam,
Yue lutava por que lutava.
Não havia conversa. Em nenhum momento ele parou para
falar.
“Se querem atacar, pois que ataquem”. – pensava. E desde
o primeiro adversário nenhuma palavra foi trocada. Apenas espadadas e mais
espadadas. Desferindo golpes, se
defendendo, sobrevivendo, matando e esperando o próximo tentar sua sorte onde o
último não foi bem sucedido.
Agora chovia... E Yue estava cercado.
Não fazia ideia de por quanto tempo esteve lutando. Era
nisso que pensava enquanto sorria. Com o pano arrancado da roupa do inimigo
amarrava a espada em sua própria mão.
Dias talvez? Quantos?
“A vida toda.” – concluiu, lembrando.
Os adversários não queriam lhe dar tempo para descansar e
avançavam.
Do topo da pilha de cadáveres Yue percebia que além
daqueles que subiam havia mais e mais chegando.
A cabeça de um dos inimigos voou. O outro despencou com
um buraco no peito e no coração.
O garoto foi atingido na perna e se ajoelhou. Seu corpo
pesou com o cansaço e seus olhos escureceram. Não levou mais de um segundo para
tudo acontecer, mas para Yue foi como se uma eternidade tivesse se passado. A
espada do inimigo erguia-se agora acima de sua cabeça, o trovão do ultimo
relâmpago finalmente foi ouvido, seu próprio coração batia devagar.
No infinito desse mísero
segundo Yue sentiu a contração dos músculos de sua face sustentando o sorriso.
Sem sequer olhar e ainda ajoelhado, ergueu a espada e defendeu o golpe do
adversário.
Era cedo demais para
acabar.
Yue estava novamente de
pé sobre a pilha de corpos. Mais alguns haviam se juntado a somatória.
- Há quanto tempo ele está lá? – um senhor robusto em
vestes militares perguntou. Tinha uma espessa barba branca que lhe dava um ar
mais gentil do que realmente era.
- Cinco dias... – respondeu o mais magro e alto, também
em vestes militares.
- Cinco dias?! – a voz do homem de barba saiu mais alta
do que esperava. Estava dignamente surpreso.
Ambos olhavam para um Yue muito diferente.
Estava seco e integro. Estava de pé sobre um campo
verdejante com seus olhos fechados e completamente imóvel.
- Será o sexto hoje, ao por do sol.
- Por todos os deuses, homem. Quanto tempo pretende
deixa-lo nessa condição?
- O garoto hospitalizou cinco de seus colegas antes de eu
coloca-lo “de castigo”. Isso sem contar os que feriu antes. Yue não respeita a
hierarquia ou qualquer forma de autoridade. Ele precisa aprender que nem tudo
se resolve através da força.
- Entendo seu ponto, hehe. Será interessante... O garoto
é casca grossa. Vamos ver até onde aguenta.
- Pensei que estivesse
preocupado.
O homem mais velho deu de ombros e se afastou afagando a
barba.
Mais três dias se passaram e agora grupos de alunos de
diferentes classes se reuniam ao redor de Yue.
Aquele era um castigo comum de Noma’rey, o homem magro e
alto em vestes militares cuja principal técnica envolvia o controle da mente.
Com suas capacidades, Noma’rey podia prender qualquer
aluno em sua própria mente vivenciando qualquer tipo de situação que desejasse
induzir. Ele também era capaz de ler os pensamentos e de descobrir os medos de
uma pessoa.
Raramente ele aplicava alguma punição sobre algum aluno e
se pudessem escolher, qualquer um ali preferiria ser punido por qualquer outro
professor.
Ninguém antes de Yue havia aguentado tanto tempo.
Na verdade havia um recorde reverso onde o aluno que
ficou menos tempo nessas condições durou apenas dois minutos e trinta e sete
segundos. Tempo mais que suficiente para que ficasse três semanas sem emitir
uma palavra sequer. Diziam que ele nunca mais voltou a ser o mesmo.
“Ninguém nunca mais é o mesmo depois dos castigos de
Noma’rey. Ele sabe do que você tem medo.” – diziam. E por mais que ninguém
nunca tenha descoberto o que o tal garoto viu nesses dois minutos e trinta e
sete segundos, sabiam que havia sido assustador o bastante para que ele nunca
mais se comportasse mal.
Antes de Yue o recorde era de dois dias. Foi conquistado
por um arrogante aluno veterano em seu último ano na academia.
Ultimo ano por que estava para se formar. E ultimo ano,
pois assim que saiu de seu castigo literalmente correu aos prantos para a
secretaria e pediu dispensa.
Segundo o que contam foi necessário mais um dia inteiro
para acalmá-lo apenas o suficiente para que pudesse voltar para casa.
Yue em compensação estava sorrindo.
Nove dias haviam se passado ao todo e ele estava
sorrindo.
Foi na manhã do décimo
terceiro dia.
Os alunos membros da
academia militar se levantaram, arrumaram suas camas, vestiram seus uniformes
brancos e seguiram para o refeitório onde faziam o desjejum.
Aqueles que chegaram depois estranharam o amontoado de
gente parada na porta, mas quem estava mais a frente se recusava a entrar.
O refeitório estava vazio exceto por Yue que calmamente
tomava seu café ainda nas mesmas vestes sujas e fedidas de treze dias atrás e
de um aluno veterano caído desmaiado aos pés do garoto com um garfo cravado em
seu pescoço e o antebraço direito com uma fratura exposta.
Não demorou até que, avisados por um dos monitores, os
professores ficassem sabendo do ocorrido. Yue já havia terminado sua refeição,
estava de pé e caminhando em direção a saída quando Noma’rey conseguiu passar
pelo grupo.
Por um momento todos ficaram em silêncio e a tensão cresceu
entre os alunos.
Noma’rey, cuja fisionomia costumava não transparecer
muitas emoções, sempre firme, sempre sério e sereno, agora demonstrava traços
de surpresa e incredulidade. Ele se preparou para falar, mas Yue foi mais
rápido e abriu um largo sorriso enquanto se aproximava do professor.
- Espero que tenha aprendido sua lição, professor. – o garoto
falou. E então, sem que ninguém tentasse o impedir, retirou-se do recinto.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Noma’rey observava Yue
através de uma janela em uma das salas no topo da academia. Lwar’rey, o homem
robusto e de barba branca entrou e se aproximou.
- Fiquei sabendo do ocorrido. O garoto hospitalizado é de
uma das turmas que dou aula.
- O que ele disse?
- Aparentemente estava curioso sobre o castigo e tentou
puxar conversa, mas Yue o ignorou e continuou tomando seu café. Ele tomou isso
por provocação, disse que iria lhe ensinar uma lição sobe respeito e
hierarquia, mas...
- Mas?
- Ao que parece as coisas não saíram muito bem para ele.
Seja lá o que ele pretendia fazer, Yue foi mais rápido. Ele disse que quando
percebeu já estava no chão com o garfo em seu pescoço e que seu braço foi
quebrado depois como “lição sobre respeito e a hierarquia do mais forte”. Ele
desmaiou com a dor.
Noma’rey não disse nada, então o mais velho continuou.
- Esse garoto
hospitalizado é o segundo melhor em luta corpo a corpo de sua unidade. Nenhum
novato seria capaz de fazer isso com ele. Foi você quem o retirou do castigo?
- Não. Ele conseguiu isso sozinho.
- Pelo visto ele não aprendeu nada, meu amigo.
- Não... Para ele, na verdade, foi uma lição para nós.
- Como é?
- O que ele me disse saindo do refeitório foi: “Espero
que tenha aprendido sua lição”. Por treze dias esse garoto enfrentou sozinho em
sua mente mais inimigos do que você e eu juntos em toda nossa vida. Por treze
dias ele esteve a beira da morte e encarando todos os seus possíveis e piores
medos. Ele esteve sobre uma pilha de cadáveres que chegaria até onde estamos
agora, Lwar’rey. O último andar desse prédio. Você entende isso?
Lwar’rey encarou o companheiro e ao perceber a seriedade
em sua expressão, também mudou sua postura.
- Você se surpreende por que um aluno veterano perdeu uma
luta corpo a corpo para um novato. – Noma’rey continuou. – Mas quantos novatos
seriam capazes de escapar do meu controle mental? “Escapar” eu disse? O mais
certo talvez seja “vencer”.
- O que você está pensando, Noma’rey?
- Em lutar com ele.
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